MATAR EM NOME DE DEUS É HOMICIDO DUPLAMENTE QUALIFICADO COM REQUINTE DE CRUELDADE.


Nas Entrelinhas do Humor e do Respeito: Reflexões sobre Liberdade e Conflito

Ainda que esse tipo de humor não encontre eco em minha apreciação, não posso ignorar a impactante capa mais recente do jornal "Charlie Hebdo", trazendo uma ilustração de Maomé segurando um cartaz com os dizeres "Eu sou Charlie". O fascínio pela genialidade por trás dessa charge me transportou a um pensamento intrincado, nos recantos da filosofia e da espiritualidade. Lembrei-me das ideias de Deus como uma força unificadora e onipresente, algo que evoca a filosofia de nosso querido Spinoza. Para ele, tudo que existe é Deus, e sob esse prisma, surge uma proposta para confrontar a estupidez humana: a brutalidade não está enraizada na religião em si, seja ela qual for, mas sim na mente doentia de uma minoria que a deturpa em sua ânsia egoísta e predatória, apropriando-se dela para disseminar a morte.

A genialidade da capa nos proporciona uma oportunidade ímpar de endereçar os extremistas assassinos: somos todos interconectados e a aniquilação de um é, de fato, a aniquilação de todos, inclusive de si mesmo. A maestria com que a charge joga com a ideia de que Deus é também o próprio Charlie Hebdo faz ecoar a possibilidade de que, para além de sua magnitude espiritual, Deus pode assumir formas igualmente obscuras.

Essa imagem, mesmo que não devidamente compreendida por alguns, reserva em si um registro próprio, uma mensagem intrínseca que transcende aqueles que se fecham ao diálogo ou à interpretação. Se, por um lado, pode-se argumentar que a tragédia não pediu por isso, por outro, reside um espaço para introspecção e auto-reavaliação, uma chance de renovação e redefinição para uma existência mais harmoniosa e menos estridente.

Como enfrentamos, então, a convivência de axiologias (sistemas de valores) tão distintas e autônomas? Essa é uma questão que ecoa nas reflexões do mestre da Filosofia Clínica, nosso estimado Lucio Packter. Todavia, é incontestavelmente evidente que pontos de convergência mais sólidos são necessários para sustentar a coexistência quando se trata de valores tão intrinsecamente arraigados, que transcendem ações e penetram no âmago de nossa identidade.

A tragédia ocorre quando nossas hipóteses são mal interpretadas, perpetuando um ciclo de ações dolorosas sem permitir espaço para aprendizado e crescimento. Em uma espécie cuja característica primordial é sua complexidade cognitiva, a possibilidade de expressão é vital. Restringir tal expressão é, em muitos aspectos, matar a essência do ser humano, afogando sua singularidade em um oceano de conformidade.

Enquanto adentrarmos no âmago da democracia francesa, a liberdade de expressão emergirá como soberana, pavimentando o caminho para a sátira e o humor em suas formas mais ousadas. A perversidade, contudo, não possui fronteiras religiosas, políticas ou ideológicas, mas reside na mente de indivíduos que distorcem e pervertem culturas e crenças para alimentar suas motivações egoístas.

A dinâmica de culturas e crenças diversas é, indubitavelmente, um enriquecimento cultural. No entanto, ao entrar no espaço do outro, não devemos, de forma alguma, desconsiderar ou suprimir valores que podem parecer desconfortáveis ou divergentes das nossas próprias crenças. O diálogo construtivo exige a capacidade de ouvir, aprender e se adaptar, um exercício de empatia que pode levar a um entendimento mútuo ou, na pior das hipóteses, a uma conciliação harmoniosa ou uma mudança de cenário.

Eliminar vidas em nome de qualquer crença é uma violação profunda da essência humana. O poder de perversão reside não na fé, mas na mente obcecada que se agarra à sua própria "verdade" como uma muleta para justificar atos terríveis.

Revisitemos, por um momento, "O Nome da Rosa", onde o poder do riso e do humor é explorado de maneiras impressionantes e às vezes perturbadoras. Acredito que nada supera o valor da vida, e a força das crenças deve ser forjada na liga mais elevada que a vida nos oferece. Devemos lembrar que justificar o assassinato é compactuar com a brutalidade. Nenhum ser humano merece sucumbir a tais extremos.

Em meio a conflitos, onde irmãos se voltam uns contra os outros, surge uma questão premente: a humanidade precisa evoluir em sua busca por compreensão mútua e respeito pela vida. Talvez seja hora de reformular nosso entendimento de Deus, afastando-nos de um pai celestial para abraçar o pai da humanidade, uma força motriz que cultiva a vida e impulsiona o desejo de existir.

A evolução, por sua vez, deve brotar da consciência, da atenção plena e do diálogo contínuo. Devemos confrontar a miragem utópica e buscar uma compreensão mais profunda, uma mudança sutil e substancial. Se, após contemplarmos a escuridão, pudermos emergir com uma evolução menos pirotécnica e mais enraizada, teremos conquistado um triunfo silencioso.

Agora, mais do que nunca, precisamos encarar esse desafio. Abraçar o olhar do outro não apenas enriquece nossas próprias perspectivas, mas também pode moldar um futuro em que o respeito, a compreensão e a convivência harmoniosa floresçam. Confrontemos nossos medos, nossa relutância, e embarquemos nessa jornada. Que possamos colher os frutos de um mundo onde as diferenças não se tornem armas, mas ferramentas para construir um futuro mais brilhante.

Alba Regina Bonotto
Psicanalista

Curitiba, Janeiro de 2015

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